Dois Pierrôs
“Respeite
minha dor
não cante agora
perdi meu grande amor” Nelson Cavaquinho
não cante agora
perdi meu grande amor” Nelson Cavaquinho
Chegam
pela noite, os dois ao mesmo tempo: os passos e o silêncio. Olham-se um ao
outro: o encontro é inesperado, mas guardam a surpresa – não querem nos
semblantes demonstrar perturbação, sinal de uma fraqueza, receio, talvez medo.
Chegam pela noite e seguem, lado a lado: os passos são iguais, os gestos são
iguais. Não se ouve palavra: só os pés roçando a terra. Seguem a mesma trilha,
fazem a mesma curva; súbito param, juntos, diante da caixa de mármore.
Fitam,
os olhos aos pares, a pedra lisa e negra. Cada um leva uma rosa – uma branca,
uma vermelha, ambas nas mãos esquerdas – que ambos tentam esconder, por
instinto ou por razão. Nas mãos, as duas rosas cujas pétalas tremem, leves – e
desvelam, no tremor, o que os dois, com zelo, ocultam. Rígidos como a pedra, os
olhos, retesados, obrigam-se a não ver mais que as letras escavadas – como se
não vissem ao lado a sombra gêmea: frieza calculada, guardada no silêncio.
Na
mão a rosa branca –
branco
era o sorriso daquela em que agora pensam: ela, ninfa morena, longos cabelos
negros, pele esculpida em bronze. Os dois a haviam visto no meio da larga
avenida: qual sílfide sambava, enlaçada em serpentinas, confetes pelo corpo
recendente a adolescência; sambava e não os via – nada via, olhos cerrados,
entregue a todo o enlevo que a arrastava na catarse. Mas eles, longe, a viam,
entre as sombras mascarados – as lágrimas pintadas sobre a face entristecida.
Quando veio a madrugada, os dois, na avenida vazia, enfim se aproximaram,
idênticos nos passos – e ela, desvairada, sambando solitária, não os viu
tirando as máscaras; nem viu quando seus lábios se arrastaram para um beijo – e
aos braços entregou-se, num arroubo: Colombina.
Na
mão a rosa vermelha –
e
os lábios separados pela lâmina da faca. Foi ela quem caiu – ela, adolescente,
sem grito e sem gemido: leve, lívida sílfide, silêncio e madrugada. E os dois
que se entreolhavam, as mãos manchadas de sangue, calando o peito o pranto no
mais vão dos fingimentos. O beijo interrompido secava nos seus lábios: nasceu
de início a fúria – o corpo, no chão, sangrava; a lâmina vibrava, cobiçosa da
vingança; mas era quarta-feira. Então se ajoelharam ao seu lado e a
contemplaram: os dois que não puderam conhecê-la, Colombina, e agora nada
tinham mais que o corpo fenecente.
E
enfim a possuíram – – –
os
olhos se encontraram, as mãos acharam as máscaras:
negras
lágrimas retintas cobriram os rostos pálidos. Deram-se então as costas e
afastaram-se, calados, outra vez iguais nos passos, no chão deixando o corpo
que outra vez não sambaria.
Fremem,
nas mãos esquerdas, as rosas desalentadas. Lentas são entregues à pedra dura e
fria, as pétalas pousando sobre o nome ali gravado, que os dois, num só
sussurro, soturnos pronunciam. E aos poucos dão-se as costas outra vez, e enfim
se afastam, sem fitar-se, austeros e hirtos – os pés roçando a terra, o luto em
meio à noite, vão deixando longe a lápide coberta pelas rosas – rosa branca,
rosa vermelha sob a chuva que, leve, cai, numa noite de quarta-feira. E ela não
mais samba: no túmulo adormecida, revive na quarta-feira – fim de festa, amor e
cinzas:
na
pedra, as letras cravadas, o nome de Colombina.
[conto
publicado na revista Literatura n. 34 - fevereiro de 2008]
Nenhum comentário:
Postar um comentário