Serei incorrigivel, romântico ou velhaco, não direi o que sinto, não sentirei o que digo, ou mesmo direi o que não sinto, enfim quero falar-lhes sobre muitas coisas.

sábado, 3 de dezembro de 2011



   Dois Pierrôs 








“Respeite minha dor
não cante agora
perdi meu grande amor”  Nelson Cavaquinho

Chegam pela noite, os dois ao mesmo tempo: os passos e o silêncio. Olham-se um ao outro: o encontro é inesperado, mas guardam a surpresa – não querem nos semblantes demonstrar perturbação, sinal de uma fraqueza, receio, talvez medo. Chegam pela noite e seguem, lado a lado: os passos são iguais, os gestos são iguais. Não se ouve palavra: só os pés roçando a terra. Seguem a mesma trilha, fazem a mesma curva; súbito param, juntos, diante da caixa de mármore.

Fitam, os olhos aos pares, a pedra lisa e negra. Cada um leva uma rosa – uma branca, uma vermelha, ambas nas mãos esquerdas – que ambos tentam esconder, por instinto ou por razão. Nas mãos, as duas rosas cujas pétalas tremem, leves – e desvelam, no tremor, o que os dois, com zelo, ocultam. Rígidos como a pedra, os olhos, retesados, obrigam-se a não ver mais que as letras escavadas – como se não vissem ao lado a sombra gêmea: frieza calculada, guardada no silêncio.

Na mão a rosa branca –

branco era o sorriso daquela em que agora pensam: ela, ninfa morena, longos cabelos negros, pele esculpida em bronze. Os dois a haviam visto no meio da larga avenida: qual sílfide sambava, enlaçada em serpentinas, confetes pelo corpo recendente a adolescência; sambava e não os via – nada via, olhos cerrados, entregue a todo o enlevo que a arrastava na catarse. Mas eles, longe, a viam, entre as sombras mascarados – as lágrimas pintadas sobre a face entristecida. Quando veio a madrugada, os dois, na avenida vazia, enfim se aproximaram, idênticos nos passos – e ela, desvairada, sambando solitária, não os viu tirando as máscaras; nem viu quando seus lábios se arrastaram para um beijo – e aos braços entregou-se, num arroubo: Colombina.

Na mão a rosa vermelha –

e os lábios separados pela lâmina da faca. Foi ela quem caiu – ela, adolescente, sem grito e sem gemido: leve, lívida sílfide, silêncio e madrugada. E os dois que se entreolhavam, as mãos manchadas de sangue, calando o peito o pranto no mais vão dos fingimentos. O beijo interrompido secava nos seus lábios: nasceu de início a fúria – o corpo, no chão, sangrava; a lâmina vibrava, cobiçosa da vingança; mas era quarta-feira. Então se ajoelharam ao seu lado e a contemplaram: os dois que não puderam conhecê-la, Colombina, e agora nada tinham mais que o corpo fenecente.

E enfim a possuíram – – –

os olhos se encontraram, as mãos acharam as máscaras:

negras lágrimas retintas cobriram os rostos pálidos. Deram-se então as costas e afastaram-se, calados, outra vez iguais nos passos, no chão deixando o corpo que outra vez não sambaria.

Fremem, nas mãos esquerdas, as rosas desalentadas. Lentas são entregues à pedra dura e fria, as pétalas pousando sobre o nome ali gravado, que os dois, num só sussurro, soturnos pronunciam. E aos poucos dão-se as costas outra vez, e enfim se afastam, sem fitar-se, austeros e hirtos – os pés roçando a terra, o luto em meio à noite, vão deixando longe a lápide coberta pelas rosas – rosa branca, rosa vermelha sob a chuva que, leve, cai, numa noite de quarta-feira. E ela não mais samba: no túmulo adormecida, revive na quarta-feira – fim de festa, amor e cinzas:

na pedra, as letras cravadas, o nome de Colombina.

[conto publicado na revista Literatura n. 34 - fevereiro de 2008]

Nenhum comentário:

Postar um comentário